EMMANUEL NASSAR – UM POP BRASILEIRO?

Por Lígia Canongia

Catálogo da Exposição
Galeria Laura Marsiaj
Rio de Janeiro, 2000

É preciso dizer que não há nada de ingênuo nesta pintura. Emmanuel Nassar realiza
um trabalho mental, em que as fontes primitivas são processadas pelo pensamento e
por comentários mordazes. Apesar da apropriação de signos e técnicas populares, a idéia não parece ser o simples elogio da precariedade ou da inocência. Recuperar a   origens e sustentar a sabedoria popular podem ser sinais aparentes, mas o trabalho não se esgota em observações de cunho antropológico. Nem o uso da imagética popular parece ser apenas um brinde à natureza amazônica e suas tradições, contexto onde vive o artista. O que a pintura de Nassar aponta, ao contrário, é para uma discussão essencialmente pictórica, para a possibilidade de se criar uma arte “pop brasileira”. E essa é uma questão que se insere em um campo particularmente especulativo, rondando a produção artística nacional desde os anos 60. Afinal, como poderia um artista brasileiro, em especial um artista da região norte do país, interpretar e ajustar às suas próprias condições as premissas que lhe foram lançadas por uma sociedade tão diferente, social e culturalmente, como a norte-americana? O que se pode reter da pop original, guardando-se as características culturais distintas, e sem trair os princípios básicos que orientaram o seu projeto? É possível pensar a arte pop fora do circuito industrializado e tecnológico, longe dos meios avançados da comunicação de massa? Nassar procura mostrar que sim.

O erro da produção da década de 60 no Brasil foi assimilar apenas a superfície da
questão pop, a sua iconografia urbana e publicitária, fazendo uma leitura puramente
formal, sem compreender o sentido trágico daquela “exterioridade”. O artista pop americano estava interessado em demonstrar o cinismo da felicidade movida pela propaganda e pelo consumo, queria provar que o processo da standardização não afetava apenas o ciclo dos produtos, mas a própria condição humana. E fazia isso procurando despersonalizar-se a si mesmo, para que a idéia da impessoalidade e da repetição reafirmasse o poder corrosivo dos estereótipos. Entre nós a coisa foi diferente: o artista brasileiro dos 60 envolveu sua arte pop de uma paixão explícita, cercada de anotações vivas e pessoais, cheias de crítica. A pop original não era crítica, era imparcial, acompanhava de perto a perda da concepção humanista das novas sociedades, onde as pessoas se tornam coisas, são tratadas como gêneros de consumo; sociedades portanto mórbidas e perversas. O sentido da pop está nessa ironia à distância, na manipulação neutra da realidade, na mera apropriação das imagens emblemáticas do mundo burguês. Com toda a sua exuberância iconográfica e cromática, havia ali um certo humor negro.

Ora, há certas afinidades aí com o trabalho de Emmanuel Nassar. Sua pintura pode ter uma informação remota da arte construtiva, dada a clareza das superfícies e a busca de uma ordem simétrica, mas a questão não é a geometria, a imaginação é pop. Só que os signos não são mais oriundos dos mass media, mas das baixas classes populares de um país do terceiro mundo. É porém com a mesma aleatoriedade que ele seleciona essas imagens, que podem ser flores, brinquedos, engenhos primitivos, mas também baterias de automóveis, serras elétricas e foguetes, numa mistura que indetermina o valor simbólico de cada coisa. Na verdade, mesmo os objetos simples e ingênuos figurados na pintura de Nassar são tratados por ele como estereótipos.

Formas quase standards que reconhecemos como “brasileiras” e “regionais”, e que têm o caráter demarcador de territórios, de costumes e práticas identificáveis e repetidas. Claes Oldenburg disse: “se vejo um Arp e coloco esse Arp na forma de um catchup, isso reduzirá o Arp, ampliará o catchup, ou torna tudo igual?” A maneira com que Nassar utiliza as coisas insignificantes do fazer primitivo e os signos fortes da sociedade bélica e industrial também são formas de redução de tudo ao mesmo. Afinal, o “bom selvagem amazônico” convive hoje com os eflúvios multiculturais, vê televisão e assiste a reclames comerciais. As classes populares, e sobretudo a classe média, quer nos EUA, quer no interior do Brasil, tendem a absorver informações sem qualquer juízo crítico. A uniformização também pode estar em certo tipo de imaginário popular pobre, acostumado com a produção dos mesmos objetos, das mesmas engenhocas. Geringonças de subúrbio, placas de caminhão, o mapa do Brasil são os nossos símbolos banais, compõem o nosso universo mais vulgarizado. O tom ingênuo da pintura de Nassar, a sua pseudopoesia provinciana é um despiste para a mordacidade. Sua ironia à distância é a mesma, com doses sutis, mas premeditadas, de humor.

De certa forma, ele ao mesmo tempo lamenta e valoriza o primitivismo do norte do Brasil, como os americanos, simultaneamente, lamentavam e endeusavam a subcultura de massas, com o mesmo cinismo. E tudo é tratado com objetividade. É claro que lances biográficos do artista brasileiro estão imbuídos no processo. Só que essa “biografia” não comparece de maneira lírica, num jorro subjetivo, assumidamente apaixonado, como no pop brasileiro dos anos 60. Quando Mário Pedrosa fala do “sertanejo Dias”, ela fala de uma obra cheia de paixão e violência, que “não nos dá um comentário jornalístico como no pop americano, mas antes um pedaço bruto de vida.” Nassar, ao invés, é discreto, tenta objetivar seus enunciados, daí inclusive a extrema economia gráfica. O que os norte-americanos falavam com abundância de elementos, ele fala com economia, reage à fartura com a pobreza, mas a neutralidade está lá. Uns, com o muito e a monumentalidade, outro com o pouco e a secura, mas tudo reduzido a emblema, buscando o que há no emblema de genérico e de síntese. As próprias iniciais EN do nome do artista, presentes em muitas obras, são emblemáticas, não remetem ao “sujeito” Emmanuel Nassar, a alguém que se esclarece pessoal e propositadamente no trabalho. Essas iniciais se confundem, dada a sua colocação na pintura, com as direções Norte e Este, que, aliás, não orientam coisa alguma. São disfarces do sujeito e da significação da obra, reduzidas a qualquer outra coisa, com o mesmo valor de qualquer outro signo presente: EN e um brinquedinho de plástico são como um Arp e um catchup.

As cores solares de Nassar, luminosas e equatoriais, colam-se, sem dúvida, ao meio “regional” do artista, mas não mais do que as cores esfuziantes da pop americana colavam-se a seu contexto específico. Para o artista americano, a cor devia ser forte e chapada, como nos anúncios publicitários. Para Nassar, que foi inclusive um profissional de publicidade, a cor também deve ter aquela lisura imparcial, que indetermine a “mão do artista”. Nassar, porém, tem como referência a luz natural, o americano tem a luz do neon. Mas como nos lembra Roland Barthes, a referência da pop americana “é, ao final, exatamente como nos bons tempos da arte clássica: a Natureza. Certo, não mais a Natureza vegetal, paisagística, ou humana e psicológica; hoje a natureza é o social absoluto, ou melhor ainda, o coletivo.” Medidas distintas, funções proporcionais de um mesmo impulso, ambas são maneiras de detectar no âmbito poético da arte o funcionamento das sociedades. É claro que alguns poderão dizer, e não sem motivo, que a pintura de Nassar não tem absolutamente a neutralidade de um pop como Warhol, que sua arte mantém sinais afetivos, sua ironia está permeada de metáforas e de humanismo, mas é quando perguntamos: e em George Segal, seria diferente? Teria sido Segal totalmente anônimo ao abordar o anonimato? É claro também que a inserção da arte pop, tal como se configurou originalmente, seria difícil de penetrar na sociedade brasileira mesmo hoje, e sobretudo na região norte do país, tão precária industrialmente. Mas, o que queremos dizer é que a resposta de Emmanuel Nassar aos princípios firmados pelo universo pop não deixa de ser uma possível resposta “pop brasileira”, pensada com inteligência, sem drama, ajustada aos limites do nosso imaginário e do nosso repertório.